A regra cristã é
clara: "Ou o casamento, com fidelidade completa ao cônjuge, ou a
abstinência total." Isso é tão difícil de aceitar, e tão contrário a
nossos instintos, que das duas, uma: ou o cristianismo está errado ou o
nosso instinto sexual, tal como é hoje em dia, se encontra deturpado. E
claro que, sendo cristão, penso que foi o instinto que se deturpou.
Tenho, no
entanto, outras razões para pensar assim. O objetivo biológico do sexo
são os filhos, da mesma forma que o objetivo biológico da alimentação é a
conservação do corpo. Se comêssemos sempre que tivéssemos vontade e na
quantidade que desejássemos, é bem verdade que muitos comeriam demais,
mas não extraordinariamente demais.
Uma pessoa pode
comer por duas, mas não por dez. O apetite pode sobrepujar um pouco a
necessidade biológica, mas não de forma completamente desproporcional.
Já um jovem saudável que fosse indulgente com o seu apetite sexual, e
que a cada ato produzisse um bebê, em dez anos conseguiria facilmente
povoar uma pequena aldeia. Tal apetite excederia a sua função de forma
cômica e absurda.
Tomemos outro
exemplo. É fácil juntar uma grande platéia para um espetáculo de
striptease — para ver uma garota se despir no palco. Agora suponha que
você vá a um país em que os teatros lotassem para assistir a outro tipo
de espetáculo: o de um prato coberto cuja tampa fosse retirada
lentamente, de modo que, logo antes do apagar das luzes, se revelasse
seu conteúdo - uma costeleta de carneiro ou uma bela fatia de bacon.
Você não julgaria haver algo de errado com o apetite desse povo por
comida? Será que, em contrapartida, uma pessoa criada em outro ambiente
também não julgaria errado o instinto sexual entre nós?
Um crítico disse
que, se encontrasse um país onde se fizessem espetáculos de striptease
gastronômico, concluiria que o povo desse país estava faminto. O que ele
quis dizer, evidentemente, é que o striptease e coisas afins não
resultam da corrupção sexual, mas da inanição sexual. Concordo com ele
que, estivesse eu num país em que o striptease de uma costeleta de
carneiro fosse popular, uma das explicações que me ocorreria seria a
fome. Mas, para comprovar essa hipótese, o passo seguinte seria
descobrir se o povo desse país consome muita ou pouca comida.
Caso se
demonstrasse que muitos alimentos são consumidos, teríamos de abandonar a
hipótese de inanição e tentar pensar em outra. Da mesma maneira, antes
de aceitar a inanição sexual como causa do striptease, temos de procurar
sinais de que, em nossa época, as pessoas praticam mais a abstinência
sexual do que nas épocas em que o striptease era desconhecido. Esses
sinais, porém, não existem. Os métodos anticoncepcionais mais do que
nunca tornaram a libertinagem sexual menos custosa dentro do casamento e
bem mais segura fora dele.
A opinião pública
nunca foi tão pouco hostil às uniões ilícitas, e mesmo às perversões,
desde a época do paganismo. Não é também a hipótese de "inanição" a
única que pode nos ocorrer. Todos sabem que o apetite sexual, como
qualquer outro apetite, cresce quando é satisfeito. Os homens famintos
pensam muito em comida, mas os glutões também. Tanto os saciados quanto
os famintos gostam de estímulos novos.
Um terceiro
ponto. Não existe muita gente que queira comer coisas que não são
alimentos ou que goste de usar a comida em outras coisas que não a
alimentação. Em outras palavras, as perversões do apetite alimentar são
raras. As perversões do instinto sexual, porém, são numerosas, difíceis
de curar e assustadoras.
Desculpe-me por
descer a esses detalhes, mas tenho de fazê-lo. Tenho de fazê-lo porque,
há vinte anos, temos sido obrigados a engolir diariamente uma série
enorme de mentiras bem contadas sobre sexo. Tivemos de ouvir que o
desejo sexual não difere de nenhum outro desejo natural, e que, se
abandonarmos a tola e antiquada ideia vitoriana de tecer uma cortina de
silêncio em torno dele, tudo neste jardim será maravilhoso.
No momento em que
examinamos os fatos e nos distanciamos da propaganda, vemos que a coisa
não é bem assim. Dizem que o sexo se tornou um problema grave porque
não se falava sobre o assunto. Nos últimos vinte anos, não foi isso que
aconteceu. Todo o dia se fala sobre o assunto, mas ele continua sendo um
problema. Se o silêncio fosse a causa do problema, a conversa seria a
solução. Mas não foi. Acho que é exatamente o contrário.
Acredito que a
raça humana só passou a tratar do tema com discrição porque ele já tinha
se tornado um problema. Os modernos sempre dizem que "o sexo não é algo
de que devemos nos envergonhar". Com isso, podem estar querendo dizer
duas coisas. Uma delas é que "não há nada de errado no fato de a raça
humana se reproduzir de um determinado modo, nem no fato de esse modo
gerar prazer". Se é isso o que têm em mente, estão cobertos de razão. O
cristianismo diz a mesma coisa.
O problema não
está nem na coisa em si, nem no prazer. Os velhos pregadores cristãos
diziam que, se o homem não tivesse sofrido a queda, o prazer sexual não
seria menor do que é hoje, mas maior. Bem sei que alguns cristãos de
mente tacanha dizem por aí que o cristianismo julga o sexo, o corpo e o
prazer como coisas intrinsecamente más. Mas estão errados. O
cristianismo é praticamente a única entre as grandes religiões que
aprova por completo o corpo — que acredita que a matéria é uma coisa
boa, que o próprio Deus cornou a forma humana e que um novo tipo de
corpo nos será dado no Paraíso e será parte essencial da nossa
felicidade, beleza e energia.
O cristianismo
exaltou o casamento mais que qualquer outra religião; e quase todos os
grandes poemas de amor foram compostos por cristãos. Se alguém disser
que o sexo, em si, é algo mau, o cristianismo refuta essa afirmativa
instantaneamente. Mas é claro que, quando as pessoas dizem "o sexo não é
algo de que devemos nos envergonhar", elas podem estar querendo dizer
que "o estado em que se encontra nosso instinto sexual não é algo de que
devemos sentir vergonha". Se é isso que querem dizer, penso que estão
erradas. Penso que temos todos os motivos do mundo para sentir vergonha.
Não há nada de
vergonhoso em apreciar o alimento, mas deveríamos nos cobrir de vergonha
se metade das pessoas fizesse do alimento o maior interesse de sua vida
e passasse os dias a espiar figuras de pratos, com água na boca e
estalando os lábios. Não digo que você ou eu sejamos individualmente
responsáveis pela situação atual. Nossos ancestrais nos legaram
organismos que, sob este aspecto, são pervertidos; e crescemos cercados
de propaganda a favor da libertinagem.
Existem pessoas
que querem manter o nosso instinto sexual em chamas para lucrar com ele;
afinal de contas, não há dúvida de que um homem obcecado é um homem com
baixa resistência à publicidade. Deus conhece nossa situação; ele não
nos julgará como se não tivéssemos dificuldades a superar. O que
realmente importa é a sinceridade e a firma vontade de superá-las. Para
sermos curados, temos de querer ser curados. Todo aquele que pede
socorro será atendido; porém, para o homem moderno, até mesmo esse
desejo sincero é difícil de ter. E fácil pensar que queremos algo quando
na verdade não o queremos.
Um cristão
famoso, de tempos antigos, disse que, quando era jovem, implorava
constantemente pela castidade; anos depois, se deu conta de que, quando
seus lábios pronunciavam "ó Senhor, fazei-me casto", seu cotação
acrescentava secretamente as palavras: "Mas, por favor, que não seja
agora." Isso também pode acontecer nas preces em que pedimos outras
virtudes; mas há três motivos que tornam especialmente difícil desejar —
quanto mais alcançar - a perfeita castidade.
Em primeiro
lugar, nossa natureza pervertida, os demônios que nos tentam e a
propaganda a favor da luxúria associam-se para nos fazer sentir que os
desejos aos quais resistimos são tão "naturais", "saudáveis" e razoáveis
que essa resistência é quase uma perversidade e uma anomalia. Cartaz
após cartaz, filme após filme, romance após romance associam a ideia da
libertinagem sexual com as ideias de saúde, normalidade, juventude,
franqueza e bom humor. Essa associação é uma mentira. Como toda mentira
poderosa, é baseada numa verdade - a verdade reconhecida acima de que o
sexo (à parte os excessos e as obsessões que cresceram ao seu redor) é
em si "normal", "saudável" etc.
A mentira
consiste em sugerir que qualquer ato sexual que você se sinta tentado a
desempenhar a qualquer momento seja também saudável e normal. Isso é
estapafúrdio sob qualquer ponto de vista concebível, mesmo sem levar em
conta o cristianismo. A submissão a todos os nossos desejos obviamente
leva à impotência, à doença, à inveja, à mentira, à dissimulação, a
tudo, enfim, que é contrário à saúde, ao bom humor e à franqueza. Para
qualquer tipo de felicidade, mesmo neste mundo, é necessário
comedimento.
Logo, a afirmação
de que qualquer desejo é saudável e razoável só porque é forte não
significa coisa alguma. Todo homem são e civilizado deve ter um conjunto
de princípios pelos quais rejeita alguns desejos e admite outros. Um
homem se baseia em princípios cristãos, outro se baseia em princípios de
higiene, e outro, ainda, em princípios sociológicos. O verdadeiro
conflito não é o do cristianismo contra a "natureza", mas dos princípios
cristãos contra outros princípios de controle da "natureza". A
"natureza" (no sentido de um desejo natural) terá de ser controlada de
um jeito ou de outro, a não ser que queiramos arruinar nossa vida.
É bem verdade que
os princípios cristãos são mais rígidos que os outros; no entanto,
acreditamos que, para obedecer-lhes, você poderá contar com uma ajuda
que não terá para obedecer aos outros. Em segundo lugar, muitas pessoas
se sentem desencorajadas de tentar seriamente seguir a castidade cristã
porque a consideram impossível (mesmo antes de tentar). Porém, quando
uma coisa precisa ser tentada, não se deve pensar se ela é possível ou
impossível. Em face de uma pergunta optativa numa prova, a pessoa deve
pensar se é capaz de respondê-la ou não; em face de uma pergunta
obrigatória, a pessoa deve fazer o melhor que puder. Você poderá somar
alguns pontos mesmo com uma resposta imperfeita, mas não somará ponto
caso se abstenha de responder.
Isso não vale
apenas para uma prova, mas também para a guerra, para o alpinismo, para
aprender a patinar, a nadar e a andar de bicicleta. Até para abotoar um
colarinho duro com os dedos enregelados, as pessoas conseguem fazer o
que antes parecia impossível. O homem é capaz de prodígios quando se vê
obrigado a fazê-los.
Podemos ter
certeza de que a castidade perfeita — como a caridade perfeita — não
será alcançada pelo mero esforço humano. Você tem de pedir a ajuda de
Deus. Mesmo depois de pedir, poderá ter a impressão de que a ajuda não
vem, ou vem em dose menor que a necessária. Não se preocupe. Depois de
cada fracasso, levante-se e tente de novo. Muitas vezes, a primeira
ajuda de Deus não é a própria virtude, mas a força para tentar de novo.
Por mais importante que seja a castidade (ou a coragem, a veracidade ou
qualquer outra virtude), esse processo de treinamento dos hábitos da
alma é ainda mais valioso. Ele cura nossas ilusões a respeito de nós
mesmos e nos ensina a confiar em Deus. Aprendemos, por um lado, que não
podemos confiar em nós mesmos nem em nossos melhores momentos; e, por
outro, que não devemos nos desesperar nem mesmo nos piores, pois nossos
fracassos são perdoados. A única atitude fatal é se dar por satisfeito
com qualquer coisa que não a perfeição.
Em terceiro
lugar, as pessoas muitas vezes não entendem o que a psicologia quer
dizer com "repressão". Ela nos ensinou que o sexo "reprimido" é
perigoso. Nesse caso, porém, "reprimido" é um termo técnico: não
significa
"suprimido" no sentido de "negado" ou "proibido". Um desejo ou
pensamento reprimido é o que foi jogado para o fundo do subconsciente
(em geral na infância) e só pode surgir na mente de forma disfarçada ou
irreconhecível. Ao paciente, a sexualidade reprimida não parece nem
mesmo ter relação com a sexualidade.
Quando um
adolescente ou um adulto se empenha em resistir a um desejo consciente,
não está lidando com a repressão nem corre o risco de a estar criando.
Pelo contrário, os que tentam seriamente ser castos têm mais consciência
de sua sexualidade e logo passam a conhecê-la melhor que qualquer outra
pessoa. Acabam conhecendo seus desejos como Wellington conhecia
Napoleão ou Sherlock Holmes conhecia Moriarty20; como um apanhador de
ratos conhece ratos ou como um encanador conhece um cano com vazamento. A
virtude - mesmo o esforço para alcançá-la — traz a luz; a libertinagem
traz apenas brumas.
Para encerrar,
apesar de eu ter falado bastante a respeito de sexo, quero deixar tão
claro quanto possível que o centro da moralidade cristã não está aí. Se
alguém pensa que os cristãos consideram a falta de castidade o vício
supremo, essa pessoa está redondamente enganada. Os pecados da carne são
maus, mas, dos pecados, são os menos graves. Todos os prazeres mais
terríveis são de natureza puramente espiritual: o prazer de provar que o
próximo está errado, de tiranizar, de tratar os outros com desdém e
superioridade, de estragar o prazer, de difamar. São os prazeres do
poder e do ódio. Isso porque existem duas coisas dentro de mim que
competem com o ser humano em que devo tentar me tornar. São elas o ser
animal e o ser diabólico. O diabólico é o pior dos dois. É por isso que
um moralista frio e pretensamente virtuoso que vai regularmente à igreja
pode estar bem mais perto do inferno que uma prostituta. É claro,
porém, que é melhor não ser nenhum dos dois.
Trecho retirado de Cristianismo Puro e Simples, de C. S. Lewis
Dica da Dani Marques
Leia Mais em: http://www.genizahvirtual.com/2014/02/sexualidade-por-c-s-lewis.html#ixzz2tJ55bIZ1
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