.
Poucas coisas nesse mundo causam-me desgosto. Por assumir uma visão normativamente negativa da humanidade, acredito que a existência e a prática de atos deploráveis são possíveis aos homens, em qualquer época e lugar, religião ou filosofia, por qualquer razão ou falta dela, a quem quer que seja por quem quer que for. E isso é claramente demonstrado na experiência humana, seja nos livros de história ou nas histórias do Datena. Num mundo com claras tendências ao mal, tenho a convicção de que a maldade do homem pode ser manifesta de diferentes modos e a qualquer momento. Entretanto, a questão da luta pela liberdade do aborto me causa um amargo desgosto.
Eu não consigo entender como alguém teria condições morais para defender o aborto como uma questão de liberdade do indivíduo. Eu acredito que para encontrar qualquer consistência nesse tipo de argumento, a dessensibilização da consciência e a desumanização da vida são fundamentais. Entretanto, essas são duas coisas que não consigo fazer.
Para dessensibilizar a consciência desse modo é necessário abraçar alguma forma de niilismo, ou talvez alguma forma extremada de hedonismo, a ponto de considerar como válido apenas o desejo do ego em detrimento da existência de um ente, que por sua fraqueza precisa ser destituído de qualquer direito, vez ou voz. Por isso, pouco importa o que [ou melhor quem] é que perde o direito a vida, o que realmente importa é que indivíduo não perca a possibilidade da liberdade dos encargos da maternidade.
Para desumanizar a vida desse modo é necessário acreditar que existem diferentes tipos de vida, e que os estágios mais embrionários da vida são na verdade não humanos. Um embrião pode até ser considerado como vivo, mas não goza do status de humano. Por isso, exterminar a possibilidade de vida fora do útero de um embrião não pode ser classificado como um assassinato.
Como já disse, essas são premissas que eu não consigo assumir. Não consigo encontrar argumentos que sejam suficientes para suportar a validade moral dessas premissas. E é por isso que eu sou contra o aborto.
Por que Sou Contra o Aborto
Partindo da cosmovisão cristã, posso afirmar que sou contra o aborto por que eu acredito na dignidade da vida humana, independente do tempo de existência. De acordo com o Cristianismo, a vida humana é marcada pela dignidade que lhe foi atribuída por seu Criador (Gen 1:26, 27a, b; 9:6). Tal dignidade é descrita nos termos da Imago Dei (imagem de Deus), que em última análise reflete a dignidade do Criador. Não importa qual é o estado de rebelião do indivíduo em relação a Deus, sua vida é ainda marcada pela dignidade derivada da criação. É por isso que o assassinato, em qualquer forma, é deplorável diante dos valores morais do Cristianismo.
Eu sou contra o aborto porque acredito na humanidade da criança não nascida, desde os mais embrionários estágios da vida. As escrituras tratam da criança não nascida como pessoas (Gen. 25:22; Jer 1.5; Sal 22:9-10; 71:6), a ponto de serem consideradas como filhos mesmo antes do seu nascimento (Lc 1.36, 41, 44). Nas escrituras, a criança não nascida é frequentemente descrita como os mesmos termos que descrevem um criança já nascida, o que sugere que não existe diferença essencial entre elas (Gen. 38:27-30; Jo 1:21; 3:3, 11-16; 10:18-19; 31:15; Sal.51:5; Isa. 49:5; Jer. 20:14-18; Os. 12:3; Lc 1:15; Rom. 9:10-11). É por iso que o aborto é considerado como assassinado do ponto de vista da cosmovisão cristã.
Eu sou contra o aborto porque o sou contra a morte de crianças inocentes. Do ponto de vista do Cristianismo, a morte do inocente é deplorável (Gen 9.6; Exo 23.7; Deut 19.10-11; 27.25; Prov 6.16-19), e no caso do aborto, a criança é penalizada com morte pelo simples fato de existir. Ela não é culpada de sua existência, ainda que com ela grandes desafios venham a existir. Do ponto de vista do Cristianismo, a vida é sagrada (Gen. 1:26–27; 2:7; Deut. 30:15–19; Jo 1:21; Sal. 8:5; 1 Cor. 15:26), em especial a vida das crianças (Sal. 127:3–5; Lc 18:15–16).
Eu sou contra o aborto porque acredito que o direito a vida da criança não nascida é maior que o direito da liberdade da mãe. A partir do momento que entendemos a criança não nascida como humana, seu direito à vida é superior ao direito da liberdade da mãe. Nas escrituras, o direito da criança é garantido na lei (Deut. 14:29; 24:17–21; 26:12–13; cf. 16:11, 14) ao mesmo tempo que o assassinato de crianças não nascidas é visto como o mais desumano e cruel dos atos dos homens ímpios (2Re 8:12; 15:16; Os. 10:14–15; Na. 3:10; cf. Mat. 2:16).
Eu sou contra o aborto porque acredito que a criança não nascida não é parte da constituição do corpo da mãe. Na verdade a criança não nascida tem um código genético distinto da mãe, um sistema imunológico distinto do da mãe e em muitos casos um tipo sanguíneo e gênero distinto da própria mãe. Nas escrituras a criança não nascida nunca é confundida com a mãe, ou apresentada como parte do corpo da mãe.
Uma Visão Retrógrada desde a Antiguidade
Talvez você tenha lido até aqui e concluído que a visão cristã da dignidade da vida humana, mesmo em sua forma mais embrionária, seja retrógrada, ultrapassada e sem lugar no diálogo sobre o aborto nos nossos dias. E talvez você tenha razão: O cristianismo defende mesmo uma opinião antiga, ultrapassada e a cada dia que passa tem seu lugar reduzido no diálogo sobre a dignidade da vida humana. Mas, historicamente, nós cristãos estamos acostumados com isso. No que se refere ao chamado “direito” ao aborto, o monoteísmo judaico-cristão é considerado ultrapassado há muito tempo.
Os filósofos da Grécia não me deixam mentir aqui. De acordo com as leis de Sólon em Atenas (638-558 a.C) os pais tinham o direito de condenar seus filhos à morte em qualquer momento de suas vidas (Sextus Empiricus: Hyp 3,24; Hermógenes: De. Invent. I.1). Entre os escritores clássicos não era incomum encontrar ilustrações desse fato, e que também não era incomum que o aborto fosse realizado por meio de substâncias químicas (ἀμβλωθρίδιον; cf. Ph.1.59; Poll.2.7; Aret.CA2.11). Platão (427-348 a.C.), por exemplo, defendia que uma sociedade forte seria construída de modo análogo a criação de animais: “Se quisermos manter nosso rebanho no mais alto grau de excelência, deve existir o maior número de união possível entre o melhor dos animais de ambos os sexos (…) Aqueles que tem pais de uma ordem inferior, e qualquer criança dentre eles que sofra de alguma deformidade serão mortos de um modo misterioso, e colocados em um lugar desconhecido, como deve ser.” (Republic 460B). Aristoteles (384-322 a.C.) também defendia que a decisão entre criar ou matar uma criança deveria ser tomada com base na deformidade da mesma, e dizia: “que deveria existir uma lei que afirmasse que nenhuma criança com deformidade tem direito a vida (…) quando um casal tiver filhos em excesso, que eles realizem o aborto antes dos sentidos e da vida começar” (Politics 7.14). Já no primeiro século da era cristã, Hilarion escreve uma carta para sua esposa Alis, na qual ele afirma: “Se porventura você engravidar, e se for um menino, deixe que ele viva. Mas se for uma menina, jogue-a fora” (P.Oxy 744).
Similarmente, em Roma o mesmo direito existia, mas com algumas ressalvas. De acordo com Dionísio de Halicarnasso (I sec a.C.), o historiador grego, existia em Roma uma lei que proibia a morte de qualquer criança antes dos três anos, pois a expectativa era que esse tempo permitisse aos pais desenvolver algum tipo de afeto pela criança antes de encerrar sua vida (Roman Antiquities 2.15). Até mesmo Sêneca (4a.C.-65d.C.), o ético e estóico escritor, partilhava desse sentimento e dizia: “Os cachorros loucos, nós esmurramos a cabeça; o animal feroz e selvagem nós matamos; as ovelhas doentes nós matamos com faca para proteger o rebanho; o descendente desnecessário nós destruímos; até mesmo afogamos as crianças que no nascimentos parecem fracas ou anormais” (On Anger I. 15.2). De acordo com Sêneca, o que movia os romanos ao nobre ato de assassinar seus descendentes não era a raiva, mas a razão. De acordo com Sêneca, a morte de um filho não desejado era um ato em conformidade com a razão. Agora, a razão em si não era a única razão pelo qual os romanos eram inclinados a assassinar seus próprios descendentes. Na verdade, as razões para tal prática eram as mais diversas, e um pai poderia assassinar seus filhos pelo simples fato de considerar ter filhos o suficiente (Longus, Pastor 4). Aliás, foi Cornélio Tácito (55-120 d.C.), o historiador romano, que ao investigar o comportamento dos judeus os ridicularizou por descobrir que eles condenavam tanto o aborto quanto o infanticídio: “Entre ele é um crime matar crianças recém nascidas” (Histories, 5.5).
Outro Fundamento, Outro Ponto de Vista
Os fundamentos éticos, morais e intelectuais do judaísmo estavam em franca oposição a visão apresentada pelos filósofos e historiadores greco-romanos. Por outro lado, os judeus não partilhavam da mesma visão apresentada por esses filósofos e historiadores greco-romanos. Os fundamentos éticos, morais e intelectuais do judaísmo estavam em franca oposição a eles. De acordo com Flávio Josefo, o povo judeu é um povo que tem orgulho em “criar seus filhos e fazê-los guardar as leis preservando a piedade tradicional, que de acordo com eles é a mais importante das tarefas nessa vida” (Apion 1.60), afinal, de acordo com Josefo, a lei “deu ordens para cuidar de todas as crianças” (Apion 2.202). Digno de nota que nas duas passagens Josefo reage contra a prática Greco-Romana de abandono de crianças e do infanticídio, demonstrando que ambas as práticas eram consideradas anátema entre os judeus. Entre eles, “uma mulher não poderia matar a crianças não nascida ainda em seu ventre, nem ainda após o seu nascimento entregar aos cães ou a aves de rapina” (Ps.Phocydes). De acordo com Filo de Alexandria, o abandono de crianças era proibido entre os judeus em função de que “tal ato de impiedade tornou-se comum entre as outras nações, devido a sua desumana natureza” (Spec.Laws 3.111). Pouco à frente Filo ainda afirma: “Que os pais que privam seus filhos de todas as bênçãos, não dividindo com eles nada no momento do nascimento, que eles saibam que estão violando as leis da natureza, e que apesar de atribuírem a tal grandeza ao amor ao prazer, eles odeiam sua própria espécie, e são assassinos, que executam o modo mais cruel assassinato, o infanticídio” (3.112). De acordo com Filo, a santa lei detesta aqueles que conspiram contra crianças, e os considera dignos de estrita punição (3.119).
De fato, o judaísmo era conhecido no mundo antigo por sua condenação do aborto e do infanticídio. A razão para tal visão da dignidade da vida humana mesmo em seu estágio embrionário, é que o ethos judaico era definido pela Lei Divina, que proibia qualquer tipo de sacrifício de crianças (Ex 13:13; Lev 18:21; 20:1-5; Num 18:14) e ao mesmo tempo reconhecia que a criança ainda no ventre de sua mãe era um ser humano (Gen 25:22-24; Ex 21:22-25; Jer 1:5). Aliás, de acordo com o AT, o próprio Deus zela pelas crianças e recompensa aqueles que as protegem (Ex.1:15-21; 2:6; Eze 16:3-6).
Diferente de outras civilizações do Oriente Médio Antigo, a legislação de Israel nem se quer menciona o caso do aborto. Por exemplo, nas Leis Assírias (1200 a.C.) encontra-se uma série de instruções relacionadas a morte de crianças não nascidas divididas em duas categorias: (1) A morte acidental da criança, vítima de um terceiro seria resolvida por meio do pagamento de um dívida. Caso a mãe viesse a morrer, o acusado pelo acidente teria o mesmo destino (A§50-52); (2) Por outro lado, se a mãe, por razões próprias decidisse terminar com a gravidez, ela também sofreria o mesmo fim, sendo empalada sem direito de ser enterrada (A§53; cf. COS II:281-2). Na legislação de Israel nós encontramos situações similares à primeira categoria mencionada nas leis assírias, entretanto, não encontramos qualquer paralelo para a segunda. Em outras palavras, a ideia do aborto era tão estranha entre os judeus, que a legislação de Israel nem sequer contemplou uma possível punição para o mesmo.
Poucas coisas nesse mundo causam-me desgosto. Por assumir uma visão normativamente negativa da humanidade, acredito que a existência e a prática de atos deploráveis são possíveis aos homens, em qualquer época e lugar, religião ou filosofia, por qualquer razão ou falta dela, a quem quer que seja por quem quer que for. E isso é claramente demonstrado na experiência humana, seja nos livros de história ou nas histórias do Datena. Num mundo com claras tendências ao mal, tenho a convicção de que a maldade do homem pode ser manifesta de diferentes modos e a qualquer momento. Entretanto, a questão da luta pela liberdade do aborto me causa um amargo desgosto.
Eu não consigo entender como alguém teria condições morais para defender o aborto como uma questão de liberdade do indivíduo. Eu acredito que para encontrar qualquer consistência nesse tipo de argumento, a dessensibilização da consciência e a desumanização da vida são fundamentais. Entretanto, essas são duas coisas que não consigo fazer.
Para dessensibilizar a consciência desse modo é necessário abraçar alguma forma de niilismo, ou talvez alguma forma extremada de hedonismo, a ponto de considerar como válido apenas o desejo do ego em detrimento da existência de um ente, que por sua fraqueza precisa ser destituído de qualquer direito, vez ou voz. Por isso, pouco importa o que [ou melhor quem] é que perde o direito a vida, o que realmente importa é que indivíduo não perca a possibilidade da liberdade dos encargos da maternidade.
Para desumanizar a vida desse modo é necessário acreditar que existem diferentes tipos de vida, e que os estágios mais embrionários da vida são na verdade não humanos. Um embrião pode até ser considerado como vivo, mas não goza do status de humano. Por isso, exterminar a possibilidade de vida fora do útero de um embrião não pode ser classificado como um assassinato.
Como já disse, essas são premissas que eu não consigo assumir. Não consigo encontrar argumentos que sejam suficientes para suportar a validade moral dessas premissas. E é por isso que eu sou contra o aborto.
Por que Sou Contra o Aborto
Partindo da cosmovisão cristã, posso afirmar que sou contra o aborto por que eu acredito na dignidade da vida humana, independente do tempo de existência. De acordo com o Cristianismo, a vida humana é marcada pela dignidade que lhe foi atribuída por seu Criador (Gen 1:26, 27a, b; 9:6). Tal dignidade é descrita nos termos da Imago Dei (imagem de Deus), que em última análise reflete a dignidade do Criador. Não importa qual é o estado de rebelião do indivíduo em relação a Deus, sua vida é ainda marcada pela dignidade derivada da criação. É por isso que o assassinato, em qualquer forma, é deplorável diante dos valores morais do Cristianismo.
Eu sou contra o aborto porque acredito na humanidade da criança não nascida, desde os mais embrionários estágios da vida. As escrituras tratam da criança não nascida como pessoas (Gen. 25:22; Jer 1.5; Sal 22:9-10; 71:6), a ponto de serem consideradas como filhos mesmo antes do seu nascimento (Lc 1.36, 41, 44). Nas escrituras, a criança não nascida é frequentemente descrita como os mesmos termos que descrevem um criança já nascida, o que sugere que não existe diferença essencial entre elas (Gen. 38:27-30; Jo 1:21; 3:3, 11-16; 10:18-19; 31:15; Sal.51:5; Isa. 49:5; Jer. 20:14-18; Os. 12:3; Lc 1:15; Rom. 9:10-11). É por iso que o aborto é considerado como assassinado do ponto de vista da cosmovisão cristã.
Eu sou contra o aborto porque o sou contra a morte de crianças inocentes. Do ponto de vista do Cristianismo, a morte do inocente é deplorável (Gen 9.6; Exo 23.7; Deut 19.10-11; 27.25; Prov 6.16-19), e no caso do aborto, a criança é penalizada com morte pelo simples fato de existir. Ela não é culpada de sua existência, ainda que com ela grandes desafios venham a existir. Do ponto de vista do Cristianismo, a vida é sagrada (Gen. 1:26–27; 2:7; Deut. 30:15–19; Jo 1:21; Sal. 8:5; 1 Cor. 15:26), em especial a vida das crianças (Sal. 127:3–5; Lc 18:15–16).
Eu sou contra o aborto porque acredito que o direito a vida da criança não nascida é maior que o direito da liberdade da mãe. A partir do momento que entendemos a criança não nascida como humana, seu direito à vida é superior ao direito da liberdade da mãe. Nas escrituras, o direito da criança é garantido na lei (Deut. 14:29; 24:17–21; 26:12–13; cf. 16:11, 14) ao mesmo tempo que o assassinato de crianças não nascidas é visto como o mais desumano e cruel dos atos dos homens ímpios (2Re 8:12; 15:16; Os. 10:14–15; Na. 3:10; cf. Mat. 2:16).
Eu sou contra o aborto porque acredito que a criança não nascida não é parte da constituição do corpo da mãe. Na verdade a criança não nascida tem um código genético distinto da mãe, um sistema imunológico distinto do da mãe e em muitos casos um tipo sanguíneo e gênero distinto da própria mãe. Nas escrituras a criança não nascida nunca é confundida com a mãe, ou apresentada como parte do corpo da mãe.
Uma Visão Retrógrada desde a Antiguidade
Talvez você tenha lido até aqui e concluído que a visão cristã da dignidade da vida humana, mesmo em sua forma mais embrionária, seja retrógrada, ultrapassada e sem lugar no diálogo sobre o aborto nos nossos dias. E talvez você tenha razão: O cristianismo defende mesmo uma opinião antiga, ultrapassada e a cada dia que passa tem seu lugar reduzido no diálogo sobre a dignidade da vida humana. Mas, historicamente, nós cristãos estamos acostumados com isso. No que se refere ao chamado “direito” ao aborto, o monoteísmo judaico-cristão é considerado ultrapassado há muito tempo.
Os filósofos da Grécia não me deixam mentir aqui. De acordo com as leis de Sólon em Atenas (638-558 a.C) os pais tinham o direito de condenar seus filhos à morte em qualquer momento de suas vidas (Sextus Empiricus: Hyp 3,24; Hermógenes: De. Invent. I.1). Entre os escritores clássicos não era incomum encontrar ilustrações desse fato, e que também não era incomum que o aborto fosse realizado por meio de substâncias químicas (ἀμβλωθρίδιον; cf. Ph.1.59; Poll.2.7; Aret.CA2.11). Platão (427-348 a.C.), por exemplo, defendia que uma sociedade forte seria construída de modo análogo a criação de animais: “Se quisermos manter nosso rebanho no mais alto grau de excelência, deve existir o maior número de união possível entre o melhor dos animais de ambos os sexos (…) Aqueles que tem pais de uma ordem inferior, e qualquer criança dentre eles que sofra de alguma deformidade serão mortos de um modo misterioso, e colocados em um lugar desconhecido, como deve ser.” (Republic 460B). Aristoteles (384-322 a.C.) também defendia que a decisão entre criar ou matar uma criança deveria ser tomada com base na deformidade da mesma, e dizia: “que deveria existir uma lei que afirmasse que nenhuma criança com deformidade tem direito a vida (…) quando um casal tiver filhos em excesso, que eles realizem o aborto antes dos sentidos e da vida começar” (Politics 7.14). Já no primeiro século da era cristã, Hilarion escreve uma carta para sua esposa Alis, na qual ele afirma: “Se porventura você engravidar, e se for um menino, deixe que ele viva. Mas se for uma menina, jogue-a fora” (P.Oxy 744).
Similarmente, em Roma o mesmo direito existia, mas com algumas ressalvas. De acordo com Dionísio de Halicarnasso (I sec a.C.), o historiador grego, existia em Roma uma lei que proibia a morte de qualquer criança antes dos três anos, pois a expectativa era que esse tempo permitisse aos pais desenvolver algum tipo de afeto pela criança antes de encerrar sua vida (Roman Antiquities 2.15). Até mesmo Sêneca (4a.C.-65d.C.), o ético e estóico escritor, partilhava desse sentimento e dizia: “Os cachorros loucos, nós esmurramos a cabeça; o animal feroz e selvagem nós matamos; as ovelhas doentes nós matamos com faca para proteger o rebanho; o descendente desnecessário nós destruímos; até mesmo afogamos as crianças que no nascimentos parecem fracas ou anormais” (On Anger I. 15.2). De acordo com Sêneca, o que movia os romanos ao nobre ato de assassinar seus descendentes não era a raiva, mas a razão. De acordo com Sêneca, a morte de um filho não desejado era um ato em conformidade com a razão. Agora, a razão em si não era a única razão pelo qual os romanos eram inclinados a assassinar seus próprios descendentes. Na verdade, as razões para tal prática eram as mais diversas, e um pai poderia assassinar seus filhos pelo simples fato de considerar ter filhos o suficiente (Longus, Pastor 4). Aliás, foi Cornélio Tácito (55-120 d.C.), o historiador romano, que ao investigar o comportamento dos judeus os ridicularizou por descobrir que eles condenavam tanto o aborto quanto o infanticídio: “Entre ele é um crime matar crianças recém nascidas” (Histories, 5.5).
Outro Fundamento, Outro Ponto de Vista
Os fundamentos éticos, morais e intelectuais do judaísmo estavam em franca oposição a visão apresentada pelos filósofos e historiadores greco-romanos. Por outro lado, os judeus não partilhavam da mesma visão apresentada por esses filósofos e historiadores greco-romanos. Os fundamentos éticos, morais e intelectuais do judaísmo estavam em franca oposição a eles. De acordo com Flávio Josefo, o povo judeu é um povo que tem orgulho em “criar seus filhos e fazê-los guardar as leis preservando a piedade tradicional, que de acordo com eles é a mais importante das tarefas nessa vida” (Apion 1.60), afinal, de acordo com Josefo, a lei “deu ordens para cuidar de todas as crianças” (Apion 2.202). Digno de nota que nas duas passagens Josefo reage contra a prática Greco-Romana de abandono de crianças e do infanticídio, demonstrando que ambas as práticas eram consideradas anátema entre os judeus. Entre eles, “uma mulher não poderia matar a crianças não nascida ainda em seu ventre, nem ainda após o seu nascimento entregar aos cães ou a aves de rapina” (Ps.Phocydes). De acordo com Filo de Alexandria, o abandono de crianças era proibido entre os judeus em função de que “tal ato de impiedade tornou-se comum entre as outras nações, devido a sua desumana natureza” (Spec.Laws 3.111). Pouco à frente Filo ainda afirma: “Que os pais que privam seus filhos de todas as bênçãos, não dividindo com eles nada no momento do nascimento, que eles saibam que estão violando as leis da natureza, e que apesar de atribuírem a tal grandeza ao amor ao prazer, eles odeiam sua própria espécie, e são assassinos, que executam o modo mais cruel assassinato, o infanticídio” (3.112). De acordo com Filo, a santa lei detesta aqueles que conspiram contra crianças, e os considera dignos de estrita punição (3.119).
De fato, o judaísmo era conhecido no mundo antigo por sua condenação do aborto e do infanticídio. A razão para tal visão da dignidade da vida humana mesmo em seu estágio embrionário, é que o ethos judaico era definido pela Lei Divina, que proibia qualquer tipo de sacrifício de crianças (Ex 13:13; Lev 18:21; 20:1-5; Num 18:14) e ao mesmo tempo reconhecia que a criança ainda no ventre de sua mãe era um ser humano (Gen 25:22-24; Ex 21:22-25; Jer 1:5). Aliás, de acordo com o AT, o próprio Deus zela pelas crianças e recompensa aqueles que as protegem (Ex.1:15-21; 2:6; Eze 16:3-6).
Diferente de outras civilizações do Oriente Médio Antigo, a legislação de Israel nem se quer menciona o caso do aborto. Por exemplo, nas Leis Assírias (1200 a.C.) encontra-se uma série de instruções relacionadas a morte de crianças não nascidas divididas em duas categorias: (1) A morte acidental da criança, vítima de um terceiro seria resolvida por meio do pagamento de um dívida. Caso a mãe viesse a morrer, o acusado pelo acidente teria o mesmo destino (A§50-52); (2) Por outro lado, se a mãe, por razões próprias decidisse terminar com a gravidez, ela também sofreria o mesmo fim, sendo empalada sem direito de ser enterrada (A§53; cf. COS II:281-2). Na legislação de Israel nós encontramos situações similares à primeira categoria mencionada nas leis assírias, entretanto, não encontramos qualquer paralelo para a segunda. Em outras palavras, a ideia do aborto era tão estranha entre os judeus, que a legislação de Israel nem sequer contemplou uma possível punição para o mesmo.
O Cristianismo é veementemente contrário ao abandono de crianças, o infanticídio e o aborto desde o estágio mais embrionário da fé cristã.
Por isso, não era surpreendente que o Cristianismo, desde o mais embrionário estágio, fosse veementemente contra o abandono de crianças, o infanticídio e o aborto. De acordo com o antigo documento cristão conhecido como Didaque (50-100d.C.), na sessão de pecados absurdos a serem evitados, nós lemos: “não assassinarás a criança por meio do aborto, nem matarás a criança já nascida” (2.2). Na epístola de Barnabé (70-130 d.C), seu autor instrui os cristãos no caminho da luz, e para permanecer nele, o cristão “não matará a criança por meio do aborto, nem a destruirá depois de seu nascimento” (19.10). Ao descrever os cristãos, o autor da carta a Diogeneto disse: “Eles se casam como todos os outros homens, e tem filhos. Mas eles não abandonam os seus filhos” (Ep.Dio. 5.6). Atenágoras de Atenas (133-190d.C.) já dizia que “aquelas mulheres que usam drogas para induzir o aborto cometem assassinato e precisarão prestar contas a Deus desse aborto” (Supplicatio 35). Pouco antes, Atenágoras também responde aos que acusam os cristãos de assassinar seus filhos dizendo que “o mesmo homem não pode proibir o abandono de crianças, ao equiparar tal atitude ao infanticídio, e então assassinar a criança que tem quem dela possa cuidar” (Supplicatio 35). Minucio Felix (150-270d.C.), respondendo à mesma acusação afirma que “ninguém acredita em tal acusação, mas sabemos quem é capaz de tal crime. Entre vocês eu vejo recém nascidos eventualmente abandonados e entregues às feras e pássaros, ou violentamente estranguladas em uma morte certamente dolorosa” (Octaviuss 30.1, 2).
Justino Mártir (110-175) escreve: “No que se refere a nós, nos foi ensinado que o abandono de crianças recém nascidas é a ação do ímpio. Isso nos foi ensinado para que não causemos a ninguém qualquer tipo de lesão, ou venhamos a ser culpados de tão ímpia conduta” (First Apology I.27.1-2). Tertuliano (155-240d.C.) já afirmava que “a lei de Moisés, na verdade, pune com o devido rigor, o homem que causar um aborto, baseado no fato de que ali já existe o rudimento de um ser humano” (Treasure on the Soul, 37). Em outro livro, Tertuliano também responde a seus acusadores sobre o cristianismo e pergunta: “Quantos dos os seus líderes, notáveis por sua justiça com vocês e pela severa administração para conosco, devo eu acusar de acordo com a consciência deles com o pecado de assassinar seus próprios filhos? No que se refere a diferença de gravidade do assassinato, esse é certamente o modo mais cruel de matar afogando [o recém nascido], ou o abandonando no frio, com fome e aos cachorros. (…) No nosso caso, entretanto, uma vez que o assassinato em todas as suas formas é proibido, nós não destruímos nem mesmo o feto no ventre de sua mãe” (Apology, 9).
Outro Ponto de Vista, Outro Modelo
Com fica evidente, o desprezo e descaso pela criança faz parta da história da humanidade. Nos nossos dias, entretanto, a idade com que as matamos, ou as razões que usamos para justificar tal ato, são diferentes, mas o desprezo e o descaso com as crianças continuam entre nós. Entre os filósofos gregos, o fortalecimento da sociedade justificava a morte de crianças fracas. Para eles, era melhor entregar uma criança que sofria de deformidades aos cães do que criar tal aberração. Entre os romanos, a razão e a sensibilidade eram os motivos para o assassinado a sangue frio de crianças, nascidas ou não. Contudo, em nossos dias alguns defendem que o assassinato de crianças não nascidas seja definido pela liberdade do indivíduo. Em outras palavras, eles querem que a decisão entre vida e morte seja entregue à mães que rejeitam sua maternidade, a indivíduos que valorizam o seu corpo, o seu trabalho, a sua carreira enquanto desprezam a vida dos seus próprios descendentes. Pessoas cuja consciência foi dessensibilizada a ponto de conseguirem desumanizar a vida dos seus próprios filhos.
Entretanto, o Cristianismo se opõe radicalmente a essa visão de mundo por que o motivo que os move é o amor. Amar ao outro sempre fez parte do monoteísmo judaico-cristão, mesmo quando esses não foram exemplares no exercício de suas responsabilidades. Entretanto, os cristãos não são apenas convidados a amar o outro, mas a amá-los do mesmo modo que seu mestre os amou (Jo.13.34-35). Os cristãos são convidados por Cristo a amar aqueles que deles discordam e orar por aqueles que os perseguem (Mt.5.44). Como Jesus Cristo, o mestre maior dos cristãos, eles valorizam e respeitam as crianças (Mt.19.14; Lc.18.16), por que sabem que quando assim o fazem, eles valorizam e respeitam o próprio Cristo (Mt.18.5). Para o cristão, servir, amar, proteger aqueles que não tem vez ou voz é um ato de amor expresso ao próprio Cristo (Mt.25.35-40). É por isso que os cristãos são contra o aborto, criam orfanatos para cuidar de crianças abandonadas, prestam assistência as crianças nas ruas, prestam assistência a mães que precisam de ajuda e lutam pela voz e o direito das crianças não nascidas. Aliás, valorizamos aqueles que não tem vez ou voz desde os momentos mais embrionários da fé cristã.
Em outras palavras, a tradição Cristã sempre foi contrária ao abandono de crianças, do infanticídio e do aborto, por que os cristãos acreditavam que a beleza e a dignidade da vida superam o desastre da morte, em especial o do assassinato. Eles valorizavam as escrituras e acreditavam que os valores morais apresentados nela eram de fato corretos, como foi também claramente ilustrados pelo próprio Cristo.
E o mesmo não é diferente comigo. Eu acredito que as escrituras apresentam os valores morais defendidos por Deus, e com ela afirmo que sou contra o aborto, infanticídio e o abandono de crianças. Pouco me importa se vier a ser rotulado como antiquado, retrógrado ou religioso por aqueles que acredito serem assassinos de crianças ou coniventes com tal atrocidade. Do ponto de vista da cosmovisão cristã, é aqui que me encontro, contra o aborto e em oposição aqueles que o valorizam.
***
Autor: Marcelo Berti
Fonte: Teologando
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