sábado, 10 de fevereiro de 2018

Bissexualidade à luz da Bíblia

 
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Por Hermes C. Fernandes

Após uma série de palestras em Goiânia, um rapaz se aproximou e me perguntou sobre o que pensava acerca da bissexualidade. Foi uma pergunta do tipo à queima roupa. Minutos antes, eu havia tratado da questão da homossexualidade, demonstrando à luz de textos sagrados o quão preconceituosos éramos e o quanto precisaríamos caminhar a fim de compreendê-la. Mas confesso que até àquela data, não havia me debruçado sobre a questão da bissexualidade. Bem da verdade, meus filhos já me haviam indagado sobre o tema, e vez por outra, recebia alguma mensagem in box esboçando dúvidas sobre a bissexualidade. Ao rapaz de Goiânia, apenas respondi que o que valia para o homossexual, deveria valer igualmente para o bissexual. Ambos deveriam submeter sua orientação sexual aos princípios do evangelho, evitando uma vida promíscua, nociva à alma humana. Desde então, tenho pesquisado sobre o assunto e resolvi incluí-lo na nova edição do meu livro "Amor Radical" a ser lançado em breve. Abaixo, um pouco do que encontrei em minha busca por compreender este fenômeno. 

A bissexualidade é atração afetiva ou sexual por mais de um gênero. O termo ‘bissexual’ surgiu no fim do século XIX, e foi usado por biólogos em referência à capacidade de um embrião humano se tornar um macho ou uma fêmea, não tendo definido suas características sexuais até a 12ª semana de gestação. Em sua teoria da evolução, Darwin define a bissexualidade como um estágio inicial na jornada evolutiva do homem, dando-lhe um sentido de ambiguidade sexual ou hermafroditismo. Entretanto, a definição do termo foi apropriada e ressignificada posteriormente, conferindo-lhe a conotação atual referente à orientação sexual bissexual.

Freud se apropriou da noção darwinista de bissexualidade e a aplicou ao campo da psicologia, sugerindo que humanos eram bissexuais, tanto física, quanto psicologicamente, e que a bissexualidade era característica secundária, ligada aos estágios primordiais do desenvolvimento psicológico humano. Assim como trazíamos características biológicas de ambos os sexos em nossa fase embrionária, traríamos características psicológicas de ambos os sexos durante a fase de desenvolvimento psíquico. Partindo deste pressuposto, era de se esperar que a bissexualidade primitiva e instintiva do indivíduo cedesse à monossexualidade[1], que seria um estágio evoluído e natural em que o indivíduo houvesse se definido sexualmente. A adolescência seria esta fase de definição. Não seria, portanto, coincidência que muitas pessoas tenham vivido experiências bissexuais em sua adolescência, ainda que não admitam para evitar constrangimento. Durante aquela fase tão marcada pela curiosidade, a identidade sexual ainda não estaria plenamente formada, o que acabaria por estimular a busca pela descoberta da própria sexualidade através de experiências variadas envolvendo ambos os sexos. Isso, porém, não significaria que o indivíduo fosse bissexual, já que ele poderia não prosseguir com esse comportamento durante a vida adulta. Alguns, porém, tendo vivenciado experiências com ambos os sexos, perceberiam sentir atração pelos dois, apresentando uma orientação sexual ambivalente, isto é, de natureza bissexual.

O número de pessoas que apresentam comportamentos e interesses de teor bissexual é maior do que se supõe. De certa maneira, é mais confortável para a pessoa identificar-se como homossexual, do que como bissexual. Geralmente, o bissexual é visto como alguém indeciso, emocionalmente instável, como se sua orientação sexual não fosse bem definida. Por vezes, confundido com alguém promíscuo, que topa qualquer coisa, não sendo raro ser chamado para um ménage à trois[2] tão logo assuma sua orientação sexual.  Tais adjetivos, porém, revelam o preconceito que tais indivíduos sofrem, tanto por parte dos heterossexuais, quanto por parte de muitos homossexuais. Dá-se a impressão de estarem em cima do muro. Muitos chegam a crer que sejam tão somente homossexuais que preferem não assumir à sua homossexualidade, simulando uma heterossexualidade fajuta.

Ainda não se sabe como a orientação sexual de um indivíduo se define, porém, vale afirmar que a orientação sexual não é uma opção pessoal. Ninguém acorda um dia e diz a si mesmo: resolvi ser bissexual. Também não se trata de uma imaturidade sexual, nem mesmo uma safadeza ou falha de caráter, e sim uma orientação desenvolvida sob influências tanto biológicas, quanto psicossociais. A orientação afetivo-sexual, bem como seus desejos, independem da vontade do indivíduo, de seus pais e familiares ou do grupo social a que pertençam.

Ao nos referirmos à bissexualidade, estamos falando de uma identidade de gênero bissexual, o que significa dizer que a mulher se sente psicologicamente mulher, porém sente atração e desejo tanto por homens, quanto por mulheres, e que o homem, apesar de sentir-se psicologicamente homem, sente-se atraído por mulheres e homens. Alguns sentem a mesma atração, isto é, com a mesma intensidade, por ambos os sexos. Outros apresentam certa prevalência por determinado sexo. Digamos que alguém possa vivenciar uma vida sexual mais frequentemente heterossexual, mas com relações homossexuais ocasionais, ou vice-versa.

Um bissexual saberá distinguir entre sua orientação e a homossexualidade, uma vez que o homossexual não sente desejo pelo sexo oposto, enquanto o bissexual sim.

Apesar de sofrer preconceito por parte de héteros e homossexuais, o bissexual encontra em sua ambivalência certo conforto, uma vez que poderá estar numa relação monogâmica com alguém do sexo oposto, ainda que nutra fantasias com pessoas do mesmo sexo, que mesmo sendo sublimadas, poderão se manifestar ao longo da vida através de sonhos eróticos, por exemplo.

Dentre os mitos que envolvem a bissexualidade está o que a associa à bigamia, ao relacionamento aberto, oposto à monogamia. Como um bissexual poderá ser monogâmico, sentindo atração por ambos os sexos? Na busca pela coerência, há quem acredite que para que um bissexual exerça plenamente sua orientação sexual, ele teria que estar numa relação bígama, com indivíduos de ambos os sexos. Este mito, porém, é facilmente refutável. Os mesmos princípios que devem nortear a vida afeita e sexual de uma heterossexual, servem também para o homossexual e o bissexual. Quando um hétero opta por entrar numa relação monogâmica, ele não deixa de sentir-se atraído por outras pessoas do sexo oposto, porém, por amor, ele renuncia a esta atração para ser fiel ao seu par. De igual modo, um bissexual pode vivenciar plenamente uma relação monogâmica, devotando ao seu par a devida fidelidade, mesmo que isso não extinga sua bissexualidade. Relacionamentos abertos, bigamia ou adultério não condizem com os princípios bíblicos e cristãos, independentemente de qual seja a orientação sexual.

Quando um bissexual ama, ama com a mesma intensidade de um hétero ou de um homossexual, e será este amor que o possibilitará ser fiel. Amor e atração sexual são coisas distintas. O amor que resulta num relacionamento deve ser direcionado exclusivamente a uma pessoa. Como disse em um podcast a preletora americana Peggy Campolo: "A diferença dos nossos amigos bissexuais é que eles têm mais flores que nós em seus jardins para escolher. Mas no final, escolhem apenas uma."

Há uma diferença entre a percepção da bissexualidade entre homens e mulheres. Mulheres parecem ter maior facilidade de assumir sua bissexualidade do que homens. Tal fenômeno pode ser creditado ao machismo, uma vez que homens bissexuais frequentemente são considerados gays enrustidos, que por não quererem assumir sua orientação, escondem-se atrás da bissexualidade.

Segundo James B. Nelson, professor de ética cristã no United Theological Seminary  de New Brighton e Minnesota, “as melhores evidências indicam que todos nós somos, até certo ponto, bissexuais. É certo que a maioria, por razões não completamente entendidas, desenvolve uma orientação dominante para o outro sexo. Mas as primeiras pesquisas de Kinsey[3] têm sido repetidamente confirmadas: na escala da orientação sexual, poucas pessoas relativamente caem perto da extremidade “zero” (exclusivamente heterossexual), e da mesma forma, poucas aproximam-se da marca “seis” (exclusivamente homossexual). Embora, para a maioria de nós, a expressão genital adulta tenha sido exclusivamente heterossexual, é provável que experimentemos sentimentos homossexuais mesmo se relegados frequentemente ao nível do inconsciente. Os homens, em nossa sociedade, têm, em geral, enorme dificuldade com isso, porque temos sido constantemente submetidos a imagens exageradas de masculinidade. Assim, acredito, vale a pena indagar se algumas de nossas mais comuns reações contra a homossexualidade não estariam ligadas a medos secretos de sentimentos homossexuais dentro de nós - “a formação da reação” de Freud significa a defesa contra impulsos que sentimos em nós mesmos atacando-os nos outros.”[4]

Davi era bissexual?

Encontramos nas páginas sagradas pelo menos um caso de comportamento que sugira bissexualidade. Trata-se do relacionamento entre Davi e Jônatas. Alguém já até sugeriu que Davi era homossexual. Tal hipótese, porém, deve ser descartada à luz dos múltiplos relacionamentos que o rei de Israel teve com mulheres. Um homossexual tão teria se sentido atraído pela mulher de um dos seus mais fiéis soldados ao vê-la se banhar. Outros sugerem que a relação entre Davi e Jônatas era apenas de amizade e companheirismo, não envolvendo qualquer aspecto carnal ou mesmo afetivo. Porém, os textos falam por si. Por mais que queiramos fazer vista grossa, a meu ver, está claro o envolvimento amoroso entre os dois. 

Duas das passagens usadas para levantar a questão têm conotação ambígua. A primeira é a que diz que “a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma.”[5] Não sejamos hipócritas. Não dá para defender nem uma das posições com esta passagem. Ela não prova nada. Nem o fato de Jônatas ter se despido na frente do amigo, dando-lhe sua armadura, por mais sugestivo que seja, não prova nada. Igualmente, a passagem em que se beijam e choram juntos não é suficientemente clara para servir de evidência de uma relação homoafetiva.[6] Era comum o beijo entre pessoas do mesmo gênero, como podemos observar em outras passagens, como aquela em que Jacó e Esaú se reencontram vinte anos depois, e a que José reencontra seus irmãos. Até aqui, nada demais.

A coisa começa a apertar quando nos deparamos com Saul, pai de Jônatas, alertando a seu filho quanto à sua escolha por Davi:

“Acendeu-se a ira de Saul contra Jônatas, e disse-lhe: Filho de mulher perversa e rebelde, não sei eu porventura que escolheste o filho de Jessé para vergonha tua, e para vergonha de tua mãe?”[7]

Como assim, “escolheste o filho de Jessé”? De que Saul está falando, afinal? Por que isso se constituiria numa vergonha à sua mãe? Por que isso colocaria em risco a sucessão do trono? É, no mínimo, instigante.

Porém, a pá de cal no assunto se encontra na lamentação que Davi faz à morte de Jônatas:

 “Por ti estou angustiado, meu irmão Jônatas. Tu eras as minhas delícias; maravilhoso me era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres.”[8]

Que malabarismo hermenêutico teremos que fazer para esvaziar o sentido erótico dessa exclamação! Quem se refere a um amigo como "delícias"? 

Algumas traduções tentam amenizar o texto, traduzindo “delícias” como “muito querido me eras” ou “quão amabilíssimo me eras.” Porém, o texto em hebraico não nos deixa dúvidas. O vocábulo traduzido como “delícias” é na’em (נָעֵם), que poderia ser igualmente traduzido como “prazer”. Exatamente a mesma palavra usada por Salomão em referência à sua amada: “Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias!”[9]

Infelizmente, nosso preconceito nos impede de enxergar o óbvio, como se atribuir bissexualidade a Davi desabonasse sua conduta. Se a Bíblia não varre para debaixo do tapete o adultério de Davi, por que cargas d’água esconderia sua bissexualidade? Quiçá, a razão pela qual isso está exposto ali seja justamente trazer alívio aos corações de tantos que se sentem atraídos por ambos os sexos. Isso nada tem a ver com caráter, mas com uma condição existencial ambígua, carente da graça de Deus tanto quanto qualquer outra condição.

Se você está entre tantos que nutrem tal atração, sinta-se em paz. Porém, busque submeter suas pulsões à vontade de Deus, santificando-se, não no sentido legalista, mas dedicando-se a uma vida íntegra, autêntica, sincera, que glorifique a seu Criador. Ser bissexual não lhe torna melhor ou pior do que ninguém. Apenas, um ser humano cuja sexualidade se manifesta de maneira ambivalente, e que deverá cuidar para que isso não lhe traga consequências indesejáveis. Ame e deixe-se amar.



[1] Ser monossexual implica sentir atração por pessoas de apenas um gênero, em um sistema binário onde o gênero do objeto de desejo poderá ser o mesmo gênero do sujeito que deseja ou o gênero oposto ao do sujeito, respectivamente homo e heterossexualidade.

[2] Ménage à trois – Prática sexual envolvendo três pessoas, podendo ser um casal e mais um homem ou uma mulher.


[3] Alfred Charles Kinsey, biólogo e pesquisador da sexualidade humana, estudou os mecanismos da bissexualidade tanto de homens como de mulheres em Sexual behavior in the human male (1948) e Sexual behavior in the human female (1953), demonstrando através da escala Kinsey que avaliava o desejo, ou seja, a orientação afetivo-sexual. Na década de 50, segundo essa escala, 46% dos entrevistados eram exclusivamente heterossexuais, 4% exclusivamente homossexuais e 50% não se apresentavam exclusivamente nem homo e nem heterossexuais, mas bissexuais.


[4] NELSON, James B. Homossexualidade: perspectivas cristãs. São Paulo: Fonte Editorial, p.65

[5] 1 Samuel 18.1

[6] 1 Samuel 20.41

[7] 1 Samuel 20.30

[8] 2 Samuel 1.26

[9] Cantares 7.6
 
 
 https://hermesfernandes.blogspot.com.br/2018/01/bissexualidade-luz-da-biblia.html?spref=fb
 
 
 

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